TRF-4 – Direito constitucional. Transexualismo. Inclusão na tabela sih-sus de procedimentos médicos de transgenitalização. Princípio da igualdade e proibição de discriminação por motivo de sexo. Discriminação por motivo de gênero. Direitos fundamentais de liberdade, livre desenvolvimento da personalidade, privacidade e respeito à dignidade humana. Direito à saúde. Força normativa da constituição. 1 – A exclusão da lista de procedimentos médicos custeados pelo Sistema Único de Saúde das cirurgias de transgenitalização e dos procedimentos complementares, em desfavor de transexuais, configura discriminação proibida constitucionalmente, além de ofender os direitos fundamentais de liberdade, livre desenvolvimento da personalidade, privacidade, proteção à dignidade humana e saúde. 2 – A proibição constitucional de discriminação por motivo de sexo protege heterossexuais, homossexuais, transexuais e travestis, sempre que a sexualidade seja o fator decisivo para a imposição de tratamentos desfavoráveis. 3 – A proibição de discriminação por motivo de sexo compreende, além da proteção contra tratamentos desfavoráveis fundados na distinção biológica entre homens e mulheres, proteção diante de tratamentos desfavoráveis decorrentes do gênero, relativos ao papel social, à imagem e às percepções culturais que se referem à masculinidade e à feminilidade. 4 – O princípio da igualdade impõe a adoção de mesmo tratamento aos destinatários das medidas estatais, a menos que razões suficientes exijam diversidade de tratamento, recaindo o ônus argumentativo sobre o cabimento da diferenciação. Não há justificativa para tratamento desfavorável a transexuais quanto ao custeio pelo SUS das cirurgias de neocolpovulvoplastia e neofaloplastia, pois (a) trata-se de prestações de saúde adequadas e necessárias para o tratamento médico do transexualismo e (b) não se pode justificar uma discriminação sexual (contra transexuais masculinos) com a invocação de outra discriminação sexual (contra transexuais femininos). 5 – O direito fundamental de liberdade, diretamente relacionado com os direitos fundamentais ao livre desenvolvimento da personalidade e de privacidade, concebendo os indivíduos como sujeitos de direito ao invés de objetos de regulação alheia, protege a sexualidade como esfera da vida individual livre da interferência de terceiros, afastando imposições indevidas sobre transexuais, mulheres, homossexuais e travestis. 6 – A norma de direito fundamental que consagra a proteção à dignidade humana requer a consideração do ser humano como um fim em si mesmo, ao invés de meio para a realização de fins e de valores que lhe são externos e impostos por terceiros; são inconstitucionais, portanto, visões de mundo heterônomas, que imponham aos transexuais limites e restrições indevidas, com repercussão no acesso a procedimentos médicos. 7 – A força normativa da Constituição, enquanto princípio de interpretação, requer que a concretização dos direitos fundamentais empreste a maior força normativa possível a todos os direitos simultaneamente, pelo que a compreensão do direito à saúde deve ser informada pelo conteúdo dos diversos direitos fundamentais relevantes para o caso. 8 – O direito à saúde é direito fundamental, dotado de eficácia e aplicabilidade imediatas, apto a produzir direitos e deveres nas relações dos poderes públicos entre si e diante dos cidadãos, superada a noção de norma meramente programática, sob pena de esvaziamento do caráter normativo da Constituição. 9 – A doutrina e a jurisprudência constitucionais contemporâneas admitem a eficácia direta da norma constitucional que assegura o direito à saúde, ao menos quando as prestações são de grande importância para seus titulares e inexiste risco de dano financeiro grave, o que inclui o direito à assistência médica vital, que prevalece, em princípio, inclusive quando ponderado em face de outros princípios e bens jurídicos. 10 – A inclusão dos procedimentos médicos relativos ao transexualismo, dentre aqueles previstos na Tabela SIH-SUS, configura correção judicial diante de discriminação lesiva aos direitos fundamentais de transexuais, uma vez que tais prestações já estão contempladas pelo sistema público de saúde. 11- Hipótese que configura proteção de direito fundamental à saúde derivado, uma vez que a atuação judicial elimina discriminação indevida que impede o acesso igualitário ao serviço público. 12 – As cirurgias de transgenitalização não configuram ilícito penal, cuidando-se de típicas prestações de saúde, sem caráter mutilador. 13 – As cirurgias de transgenitalização recomendadas para o tratamento do transexualismo não são procedimentos de caráter experimental, conforme atestam Comitês de Ética em Pesquisa Médica e manifestam Resoluções do Conselho Federal de Medicina. 14 – A limitação da reserva do possível não se aplica ao caso, tendo em vista a previsão destes procedimentos na Tabela SIH-SUS vigente e o muito reduzido quantitativo de intervenções requeridas. 14 – Precedentes do Supremo Tribunal Federal, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, da Corte Européia de Justiça, do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, da Suprema Corte dos Estados Unidos, da Suprema Corte do Canadá, do Tribunal Constitucional da Colômbia, do Tribunal Constitucional Federal alemão e do Tribunal Constitucional de Portugal. DIREITO PROCESSUAL. LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. ABRANGÊNCIA NACIONAL DA DECISÃO. 15 – O Ministério Público Federal é parte legítima para a propositura de ação civil pública, seja porque o pedido se fundamenta em direito transindividual (correção de discriminação em tabela de remuneração de procedimentos médicos do Sistema Único de Saúde), seja porque os direitos dos membros do grupo beneficiário têm relevância jurídica, social e institucional. 16 – Cabível a antecipação de tutela, no julgamento do mérito de apelação cível, diante da fundamentação definitiva pela procedência do pedido e da presença do risco de dano irreparável ou de difícil reparação, dado o grande e intenso sofrimento a que estão submetidos transexuais nos casos em que os procedimentos cirúrgicos são necessários, situação que conduz à auto-mutilação e ao suicídio. Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. 17 – Conforme precedentes do Supremo Tribunal Federal e deste Tribunal Regional Federal da 4ª Região, é possível a atribuição de eficácia nacional à decisão proferida em ação civil pública, não se aplicando a limitação do artigo 16 da Lei nº 7.347/85 (redação da Lei nº 9.494/97), em virtude da natureza do direito pleiteado e das graves conseqüências da restrição espacial para outros bens jurídicos constitucionais. 18 – Apelo provido, com julgamento de procedência do pedido e